Sul da Bahia: um retrato do Brasil diverso e desigual
- Milca Neves Tavares
- 27 de fev.
- 3 min de leitura
Paisagem impecável, clima agradável, pessoas acolhedoras e uma comida boa demais contrastam em todas as direções que se olha com a falta de acesso e poucas oportunidades da população.

Imagem: Quadrado, em Trancoso, Porto Seguro/BA.
Eu e o Ale vivemos um tempo na Bahia durante a época que a gente rodou o país. O ano era 2019 e a época uma época de mais chuvas, na baixa temporada. Ficamos bastante tempo no litoral sul do estado, onde apesar do turismo ser o carro-chefe da economia, naquela época estava bem tímido, com algumas poucas famílias rodando pelas belas praias e pelos centrinhos comerciais.
Nos primeiros dias, nossa primeira reação por estar ali foi de puro encantamento: paisagem impecável - até do nosso pequeno quarto, cozinha e banheiro a gente avistava aquele belo mar azul, calmo e inebriante, clima agradável, cada pôr do sol mais incrível que o outro, comida mais barata do que estávamos acostumados quando a gente morava no sudeste e, principalmente, pessoas acolhedoras, de trato gostoso.
Quase todos com quem a gente conversava eram calorosos e simpáticos: lembro de passar bons tempos conversando com a Camila, que tinha uma pequena loja de acarajés, quando íamos comer por lá, e de trocar ideia com o Val, dono de um pequeno carrinho de drinks no centro da cidade. Eram pessoas de regiões próximas que foram ali para perto do centro de Trancoso por conta do alto movimento de turistas buscando sobreviver e prosperar nos seus negócios. Eram pessoas alegres por fora, mas que escondiam uma certa carga pesada no olhar. Eram pessoas de pele parda, que nitidamente carregavam toda a herança deixada pelos seus ancestrais e a história de como eles viveram.
Com o passar do tempo, fomos ampliando as nossas experiências por ali, saindo do roteiro básico dos turistas. Descobrimos um comércio mais local, com um supermercado maior e mais barato, ruas menos tomadas por pousadas ou casas para locação, paisagens não tão belas quanto as próximas do mar, mas nada chamou mais atenção do que uma praça local, a Praça da Independência, que ficava talvez a menos de 1 km do chamado Quadrado.

Imagem: Praça da Independência revitalizada, em Trancoso, Porto Seguro/BA.
Ali na praça, as pessoas que viviam na cidade, inclusive os que trabalhavam nos restaurantes, pousadas e hotéis, exerciam o seu “direito à cidade”: bebiam sua cervejinha, comiam o seu lanche e jogavam bola.
Ali uma refeição poderia ser feita com R$ 10, enquanto no Quadrado na época um prato podia chegar a custar R$ 300. Ali as pessoas chegavam e estacionavam suas motos onde tivesse espaço, ali caixas de som alto competiam pela atenção de quem chegava.
Fomos algumas vezes comer e beber nesse lugar, mas lá era bem mais difícil conversarmos com alguém do que em outras áreas da cidade onde a gente estava dentro de um padrão esperado. Todos pareciam notar a nossa presença tentando não notar. Era como se estivéssemos fora do nosso lugar.
Essa sensação de que a água e o óleo não se misturam mexeu muito com comigo porque, para mim, foi mais uma vez uma forma de sentir na pele o que é o retrato do Brasil: um país que se divide e se segrega em grupos de classes sociais, um país onde só coexistem esses grupos em uma configuração óbvia: os mais privilegiados sendo servidos pelos menos privilegiados! Onde isso não está acontecendo, essa mistura quase não acontece.
A inquietude que isso me trouxe foi uma das heranças dessa experiência que carreguei comigo, entre tantas outras que o “viver o Brasil” me trouxe. Dá vontade de compartilhar esse sentimento com meus filhos, meus pais, meus amigos, pessoas com quem trabalho. Isso é impossível porque a gente sempre enxerga o mundo pela nossa lente e toma decisões considerando o que a gente conhece, não é?
De todo jeito, isso me faz refletir muito!
Como incluir outras visões de mundo naquilo que estou construindo, com o mínimo possível de preconceito e resistência?
Como estar à serviço da redução dessas desigualdades tão ruins para todo mundo?
Se tem gente comendo por R$ 300 um prato e gente comendo por R$ 5 não é preciso ser especialista para concluir que a qualidade da comida é totalmente diferente, não é? Quem come mal tem mais propensão a ter uma saúde pior. Quem tem a saúde pior tem menos condição de trabalhar bem. Quem não trabalha bem reduz seu acesso à renda. Quem tem menos acesso à renda vive pior (e consome menos, portanto ainda deixa de ser um potencial gerador de riquezas para as empresas e a sociedade - para quem acredita que economia é tudo!).
Ter gente vivendo mal, no final, é ruim para todo mundo!
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